Direito Tributário

O ICMS gerado por Usinas Hidroelétricas e o problema de seu rateio entre os municípios

O ICMS gerado por Usinas Hidroelétricas e o problema de seu rateio entre os municípios

 

 

Kiyoshi Harada*

 

 

A matéria parece ser simples, mas, na prática, existem grandes dificuldades que só podem ser superadas mediante estudos específicos, não encontráveis nos tradicionais manuais de Direito Tributário ou Financeiro.

    

Como se sabe, pertencem aos Municípios 25% do produto da arrecadação do ICMS, conforme prescrição do art. 158, IV da CF. Dispõe o parágrafo único desse artigo:

 

“As parcelas de receita pertencentes aos Municípios, mencionadas no inciso IV, serão creditadas conforme os seguintes critérios:

I – ¾ (três quarto), no mínimo, na proporção do valor adicionado nas operações relativas à circulação de mercadorias e nas prestações de serviços, realizadas em seus territórios;

II – ¼ (um quarto), de acordo com o que dispuser lei estadual ou, no caso dos Territórios, lei federal”.

 

    

A Lei Complementar nº 63/90, cumprindo o disposto no art. 161 da Carta Política, definiu o que seja valor adicionado para o efeito do disposto no inciso I, do parágrafo único retrotranscrito, bem como, estabeleceu normas para a entrega dos recursos financeiros e critérios de rateio entre as entidades políticas contempladas. O art. 3º dessa Lei Complementar repete o disposto nos incisos I e II do texto constitucional já mencionado, de sorte a assegurar aos Municípios o mínimo de ¾ , na proporção do valor adicionado nas operações e prestações realizadas em seus respectivos territórios, e até ¼ de acordo com o que dispuser a lei estadual.

    

A Lei nº 3.201/81 do Estado de São Paulo, com a redação dada pela Lei nº 8.510/93, disciplinou essa matéria em perfeita harmonia com os textos da Carta Magna e da Lei Complementar citados ao determinar que o índice de participação dos Municípios seja apurado, 76% com base no valor adicionado em cada Município e 24% segundo outros critérios aí previstos, tais como a relação percentual entre a população de cada Município e a população total do Estado, a relação percentual entre a área cultivada em cada Município, no ano anterior ao da apuração, e a área cultivada total do Estado etc.

    

Dessa forma, aparentemente, essa questão do rateio do ICMS não poderia oferecer maiores dificuldades. Entretanto, na vida prática, em se tratando de ICMS gerado por Usinas Hidroelétricas, inúmeros problemas tem surgido, todos eles originários de reivindicações – não importando se justas ou não – de Prefeitos dos Municípios, cujos territórios estejam envolvidos na produção e venda de energia elétrica. E nessas reivindicações junto ao governo estadual, onde prevalecem as pressões políticas, costumam-se misturar os aspectos legais da questão e os aspectos técnicos, relevantes apenas para a produção de energia elétrica, valendo a pena lembrar a confusão que vem se estabelecendo entre o fato gerador do ICMS com a geração de energia elétrica, que nem sempre ocorrem no mesmo território municipal. Uma Usina pode conter o reservatório de águas em determinado Município ou abarcar territórios de vários Municípios; pode ter a subestação elevatória localizada em Município diverso daquele ou daqueles onde se encontra o reservatório de água; pode, enfim, ter as instalações geradoras de energia em Município diferente daquele onde se acha o seu estabelecimento distribuidor/vendedor de energia elétrica. Isso vem acontecendo com relação às Usinas de Promissão, de Ilha Solteira, de Pereira Barreto etc., localizadas no interior paulista. Essa situação vem ensejando acirradas discussões no âmbito político-administrativo, com cada um dos Prefeitos exercendo pressões sobre o governo estadual, procurando obter para o seu Município fatia maior do bolo tributário.

    

Em decorrência dessas pressões políticas que, em princípio, são legítimas, o Estado de São Paulo editou a Lei nº 9.332/95, a qual, alargou o conceito de estabelecimento de usina elétrica e estabeleceu percentuais de rateio diferentes daqueles previstos na legislação até então vigente, de forma a possibilitar divisão eqüitativa (meio a meio) das parcelas do ICMS entre os Municípios envolvidos na geração e distribuição de energia elétrica.

    

Essa lei paulista, por extravasar dos limites da competência constitucionalmente atribuída ao Estado-membro, teve a sua eficácia suspensa através de medida liminar concedida pelo STF, nos autos da Adin nº 1423/SP, proposta pelo Procurador-Geral da República, tudo conforme decisão publicada no DJ do dia 22-11-96, p. 45.684.

    

Para atender às reivindicações dos Prefeitos dos Municípios envolvidos o governo do Estado aventou, então, a possibilidade de celebração de convênios entre eles, visando a divisão igualitária do valor adicionado. Com esse objetivo Prefeitos de diversos Municípios, beneficiários desse valor adicionado, reuniram-se com o sr. Secretário da Fazenda do Estado, ocasião em que receberam detalhadas explicações técnicas que conduziam à necessidade de repartição eqüitativa das cotas do ICMS pertencentes aos Municípios. Como forma de forçar a celebração desses convênios e, conseqüentemente, livrar-se de pressões políticas o governo estadual acenou com a possibilidade de transferir o estabelecimento da CESP de uma localidade para outra. Assim, uma questão que é estritamente jurídica, em face do que dispõe a Carta Política, estava sendo perigosamente deslocada para o campo político. Nessa oportunidade, fomos honrados com o convite do sr. Prefeito de Pereira Barreto, Comendador Jorge Tanaka, para assessorá-lo no encaminhamento dessa questão, que surgiu em seu Município em decorrência de reclamos feitos pelo vizinho Município de Andradina, onde estariam as instalações geradoras de energia da Usina Hidroelétrica de Três Corações, cujo reservatório acha-se inteiramente no território do primeiro Município, bem como o estabelecimento do contribuinte do ICMS.

    

Descartamos, desde logo, a solução do problema através de convênio por refugir das normas legais e constitucionais que regem a matéria, alinhando os argumentos expostos no parecer que se segue.

    

Pelo texto constitucional vigente, o Município de Pereira Barreto, onde se localiza o estabelecimento da CESP, distribuidor/vendedor da energia elétrica produzida pela Usina Hidroelétrica de Três Irmãos, tem direito à percepção das parcelas da seguinte forma: a) ¾ , no mínimo (75%), na proporção do valor adicionado nas operações e prestações realizadas no seu território; b) até ¼ (25%), de acordo com o que dispuser a lei estadual. E pela Lei estadual de nº 3.201/81, com a redação dada pela Lei nº 8.510/93, que se harmoniza com o mandamento constitucional e com o texto da Lei Complementar nº 63/90, o citado Município faz jús à percepção da cota do ICMS, apurada 76% com base no valor adicionado nas operações havidas em seu território, e 24% apurada segundo os critérios aí previstos, que incluem elementos alheios ao fato gerador da obrigação tributária.

    

Como se sabe, não mais se discute a inclusão de critérios estranhos ao fato gerador (número de população, receitas próprias etc.), desde que se atenha ao limite máximo de ¼ (25%). A eficácia da Lei nº 9.332/95, que introduziu alterações no critério previsto na legislação retro mencionada, por manifesta contrariedade ao texto constitucional, acha-se suspensa, como já vimos.

    

A interpretação conjugada dos arts. 155, b e 158, IV e seu parágrafo único, da Carta Política vigente e do art. 110 do CTN conduz, necessariamente, ao entendimento de que o índice de participação do Município no produto de arrecadação do ICMS deverá fundar-se, no mínimo ¾ na relação percentual entre o valor adicionado em cada Município e o valor total do Estado, ou seja, no mínimo 75% haverá de resultar das operações e prestações realizadas no território municipal, onde ocorreu o fato gerador da obrigação tributária.

    

E o fato gerador do ICMS não é complexo ou continuado, como no caso do imposto sobre a renda, mas, instantâneo em virtude da relevância conferida, pela legislação, ao seu aspecto temporal, o que faz a obrigação tributária nascer no exato momento da saída da mercadoria (venda ou distribuição de energia elétrica) do estabelecimento do contribuinte (art. 116, I do CTN, art. 1º do DL nº 406/68, art. 2º do Convênio nº 66/88, art. 12, I da LC nº 87/96 e art. 2º da Lei nº 6.374/89 e do Decreto nº 33.118/91, ambos do Estado de São Paulo).

    

Como quem promove a venda de energia elétrica gerada pela Usina Hidroelétrica de Três Irmãos é a CESP, cujo estabelecimento situa-se no Município de Pereira Barreto, em face do disposto no art. 127, II do CTN, não há como fugir à conclusão de que o fato gerador do ICMS ocorre no território desse Município.

     

A questão da localização dos reservatórios de água, das barragens e suas comportas, da subestação elevatória, dos condutos forçados e demais instalações destinadas a gerar energia elétrica, nenhuma importância jurídica tem em relação ao ICMS, como já assinalado pelo Superior Tribunal de Justiça (Resp nº 0038344-PR, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros; DJ 31-10-94, p. 29476, RSTJ-66/313). Tais circunstâncias só ganham relevância jurídica na percepção da compensação financeira, instituída pela Lei nº 7.990/89, com fundamento no § 1º do art. 20 da CF. Nesse caso, segundo a Lei nº 8001/90, que define os percentuais devidos em cada hipótese, o valor da compensação financeira será rateado entre o Município que teve as suas áreas invadidas pelos reservatórios de água e o Município em cujo território localizar-se as instalações geradoras de energia elétrica. E isso porque a compensação financeira tem caráter indenizatório pelos transtornos trazidos pela atividade exploratória, embora, do ponto de vista legal, constitua receita corrente do Município (§ 1º, do art. 11 da Lei nº 4.320/64).

    

Outrossim, a receita tributária, quer resultante de poder impositivo próprio, quer decorrente de participação no produto de arrecadação de imposto alheio, constitui-se em bem público essencial ao cumprimento das missões atribuídas pela Constituição da República a cada entidade política. Por isso ela é inegociável, irrenunciável e imodificável pela vontade do governante. Tanto a imposição tributária, quanto a repartição de receita tributária são questões exaustivamente disciplinadas no Estatuto Magno, sem conferir margem de liberdade ao legislador infraconstitucional senão nos estritos limites da previsão constitucional. A percepção dessa receita tributária não pode, pois, ser objeto de convênio entre os Municípios, mesmo porque esse instrumento não é o apropriado para reger a matéria sob análise.

    

Tão importante é a receita tributária, para a vida dos Municípios, que a Carta Magna prevê a intervenção federal nos Estados que deixarem de entregar-lhes as receitas tributárias nela fixadas (art. 34, V, b da CF). De outro lado, a Lei nº 8.429/92, em seu art. 10, inciso X, capitula como ato de improbidade administrativa o fato de o agente público negligenciar na arrecadação de tributos.

   

Por derradeiro, resta analisar a eventual possibilidade de mudança do domicílio fiscal da distribuidora de energia elétrica, decorrente de pressões políticas. Não acreditamos nessa possibilidade de a CESP vir a transferir o seu estabelecimento para o Município de Andradina, pois, inexiste qualquer fundamento de natureza técnica ou econômica para que o Estado oriente a sua estatal nesse sentido. Para promover o equilíbrio sócio-econômico entre os Municípios a Carta Magna já reservou, de antemão, a possibilidade de o Estado, através de critério próprio, direcionar a distribuição de até ¼ do montante do ICMS pertencente às entidades políticas locais. A faculdade conferida pelo inciso II, do parágrafo único, do art. 158 da Constituição da República não pode ser transformada em instrumento de política de proteção dos Municípios pobres, senão nos estreitos limites da outorga constitucional que restringe a ¼ das parcelas do imposto pertencentes aos Municípios, e não à metade, como se pretende.

    

Logo, qualquer tentativa nesse sentido configuraria desvio de finalidade, agravado neste caso, pela afronta ao princípio federativo, que preserva a autonomia e independência das entidades políticas, que compõem a Federação Brasileira e que são juridicamente parificadas.

    

Simplesmente impensável, possa o Estado-membro utilizar-se de sua empresa estatal – concessionária de serviço público federal, constituída com objetivo específico de promover a geração e distribuição de energia elétrica pelo território do Estado – para favorecer este ou aquele Município em detrimento de outro Município, burlando a rígida determinação constitucional, regulada em nível de lei complementar, e fomentando antagonismos entre as entidades políticas locais.

    

De qualquer forma, eventual ato de transferência da CESP poderia ser, facilmente, invalidado pelo Poder Judiciário, através de ação própria, por evidente desvio de finalidade. A liberdade de o governo estadual escolher este ou aquele Município para construção de uma Usina Hidroelétrica, bem como de situar o estabelecimento da concessionária neste ou naquele Município só tem aplicação em casos de novas Usinas. Nas que estão em funcionamento há vários anos, eventual mudança de domicílio fiscal do estabelecimento do contribuinte (da CESP) deverá ser precedida de explicações técnicas convincentes, tais como o aumento da produtividade, o barateamento de seu custo, a melhoria das condições de trabalho etc.. Sem esses componentes resulta com solar clareza a adoção de critério político, caracterizador do desvio de finalidade, que torna nulo e insubsistente o ato de transferência.

    

Por outro lado, a transferência do estabelecimento da CESP, no caso, para o Município de Andradina não encontraria suporte no princípio da razoabilidade, previsto no art.111 da Constituição do Estado, à medida em que não haveria qualquer razão técnica, única a legitimar o ato. Não só as leis, como também, os atos administrativos devem obediência a esse princípio, sob pena de inconstitucionalidade.

    

Do exposto, smj, entendemos que a Municipalidade de Pereira Barreto deve bater-se pela manutenção do critério atualmente em vigor, na apuração do índice de participação, de conformidade com o que prescreve a Constituição da República, a Lei Complementar nº 63/90 e a Lei estadual de nº 3.201/81, com a redação dada pela Lei de nº 8.510/93. O critério preconizado pela Lei nº 9.332/95 não pode ser utilizado em razão de decisão judicial proferida pela mais Alta Corte de Justiça do País, cujo descumprimento ensejaria a medida prevista no art. 34, VI da CF. E também não pode, através de vias oblíquas, esvaziar o conteúdo da decisão emanada do Supremo Tribunal Federal.

 

 

* Advogado e professor de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário, Diretor da Escola Paulista de Advocacia e Ex-Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica da

  Procuradoria Geral do Município de São Paulo.

 

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Como citar e referenciar este artigo:
HARADA, Kiyoshi. O ICMS gerado por Usinas Hidroelétricas e o problema de seu rateio entre os municípios. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-tributario/o-icms-gerado-por-usinas-hidroeletricas-e-o-problema-de-seu-rateio-entre-os-municipios/ Acesso em: 25 abr. 2024